Maria José de Oliveira Santos
UNEB/CAMPUS II/DLLARTES
marmano2010@hotmail.com
INTRODUÇÃO
A escrita traduz realizações e ilusões de indivíduos e coletividades, povos e nações. Isto acontece desde cartas, romances, contos, poemas, dentre outros. No caso deste estudo as crônicas da escritora nascida em Alagoinhas-Bahia, Maria Feijó de Souza Neves, representam episódios e cenas de uma cidade do interior, tornando possível retornar ao começo do século XX no que se referem a cenários, pessoas e fatos. Metodologicamente, o estudo inicia-se pela leitura em Alecrim do tabuleiro:…crônicas evocativas de Alagoinhas (1972), porque rememora um rico painel de ruas, praças, escolas e situações pessoais e familiares através de trinta crônicas voltadas ao município. O pensionato, ‘paraíso das moças’ (1988), une no decorrer das vinte e três crônicas cenas da vida de Maria Feijó no Rio de Janeiro, de onde sugere fatos de Alagoinhas com saudade e melancolia. Baseando-se na necessidade da escritora em narrar rememorando o estudo ressalta que a escrita pode trazer à cena inquietações desde infância até a maioridade e, neste caso, de uma mulher em cujas linhas dos textos sobressaem saudade, indignação, alegria e desejo. As leituras, que podem ser classificados como bibliográfico-memorialísticos (BAKHTIN, 2003) evidenciam a ausência de uma sequência, pois, ao tempo que sugere fatos de infância retorna ao presente, conferindo sabor diferente à leitura como se seu intuito fosse escrever no momento em que os fatos chegassem a sua memória. Suas narrativas apelam ao uso de aspas, letras maiúsculas em algumas palavras e reticências, mostrando seu estilo peculiar. Em “Carta a Alagoinhas” percebe-se sua necessidade de recuperar dados sobre sua infância, adolescência, fase adulta e mudança ao Rio de Janeiro, mas a saudade é suplantada pelas realizações profissional, pessoal e literária no Rio de Janeiro.
1 RECORDAR É VIVER: INFÂNCIA, JUVENTUDE, VIDA ADULTA EM ALECRIM DO TABULEIRO:… CRÔNICAS EVOCATIVAS DE ALAGOINHAS
[…] Essa cidade não pode fugir dos passos de minha vida, palmilhados na infância e grande parte na adolescência assim como penso e quero tentar, questionando comigo mesma, porque, na realidade, foi lá que nasci e vivi por quanto tempo… […]
Maria Feijó, que escreveu utilizando-se de pseudônimos (Marijó, Moreninha Bamba, Geisha, Gladys, Senhora, Suzete) foi (e é), a Musa de Alagoinhas, nasceu em 27.11.1918 e faleceu no Rio de Janeiro (04.06.2001), narrou:
Coisas de infância permanecem latentes, nítidas […] isto me veio, me vendo, por acaso num querido álbum quase esquecido num canto, uma fotografia evocativa em que figuram meus dois irmãos e eu – a rainha, a caçula dos três, sempre muito querida e mimada por eles… (FEIJÓ, 1972, p. 26).
Morou em um sítio, mas, não se manteve longe de questões sociais e políticas que envolviam o município. Sua família integrava a considerada alta sociedade, possuindo amigos influentes na esfera estadual. Foi influenciada pela mãe, que compunha o prestigiado trio político de mulheres de destaque. Maria Feijó adquiriu relevante posição social no contexto educacional.
- PROFESSORA PRIMÁRIA E BIBLIOTECÁRIA: DESEJOS E (IN) SATISFAÇÕES
Deve-se viver o presente […] esquecendo-se por completo do passado e com olhos vislumbradores e pressurosos para o futuro… (Mas… que culpa tenho eu de trazer um transbordamento de emotividade na alma eternamente romântica?…) (FEIJÓ, 1972, p. 40-41).
Maria Feijó formou-se no Magistério na Escola Normal de Alagoinhas. No tempo em que exerceu a profissão foi vítima de perseguição política manifestada através de transferências a locais distantes da sede. Exerceu a profissão em Senhor do Bonfim, Vila Aramari, Santo Amaro da Purificação, e, por fim, chega a Alagoinhas onde inicia a defesa do setor educacional. E, para ela, o ensino primário estava relacionado ao papel de “esposa-e-mãe”, pois é “amoldável” ao “senso maternal”: “[…] queira ser PROFESSORA PRIMÁRIA. SEJA PROFESSORA PRIMÁRIA, profissão quão espinhosa, mas TAMBÉM… tão nobre, indicada, ajeitável, ajustável, amoldável à alma, à vida da mulher […] (FEIJÓ, 1972, p. 24).
A escrita de Maria Feijó reforça ternura e sensibilidade como peculiaridades da mulher. Segundo Roberto da Matta (1977), a mulher foi treinada para viver em espaços fechados. Em outro contexto, Tereza Cristina P. C. Fagundes (2005, p. 112) ressalta: “[…] grande parte de estudos sobre a educação feminina” evidenciam tênue relação entre “ser mulher” e escolha de cursos com conteúdos humanísticos e estigmatizados como femininos. Além de professora, o sonho de Maria Feijó era realizar um curso de Biblioteconomia, pois, próxima de discentes cuidaria mais da educação e consegue realizar, em Salvador (1949), o Curso Intensivo de Biblioteconomia para Professoras Primárias, sendo nomeada bibliotecária escolar. Movida pelo desejo, fundou a Biblioteca Ruy Barbosa localizada na instituição escolar em pleno funcionamento em Alagoinhas, a Escola Brazilino Viegas.
A escritora criou a “Hora da Biblioteca” e a “Escola de Brotinhos” e, no Serviço de Alto-Falantes “A Voz da Liberdade”, onde crianças e adolescentes encontravam espaço para expressar suas criações artísticas através de declamações, ensaios teatrais, musicais, dentre outras manifestações lítero-culturais (FEIJO, 1972, p. 90-91). Trata-se de outra atividade não admirada pelas mulheres da cidade, porque Maria Feijó adentrava em atividades que deveriam ser desempenhadas por homens.
1.2 CENAS DE UMA PARTIDA: DEIXANDO ALAGOINHAS
Desde cedo, Maria Feijó alimentava o ideal de altos horizontes, pois não apreciava cidades pequenas, no entanto, nasceu em uma e aprendeu a amá-la. Viveu na Fazenda Gavião na adolescência. O lugar interiorano a asfixiava, daí a vontade de migrar em busca de outras oportunidades. E, como não suportava mais horizontes estreitos de incompreensão partiu em busca de realizações que almejara. Entrou no trem “Pirulito” (“Maria Fumaça” ou “Marta Rocha”) e chegou a Salvador. A seguir, tomou um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) e aterrissou no Rio de Janeiro (Distrito Federal) para estudar Biblioteconomia em uma faculdade, sonho que lhe incomodava desde tempos da Escola Norma de Alagoinhas.
2.1 VIVÊNCIAS NO RIO DE JANEIRO: O PENSIONATO “PARAÍSO DAS MOÇAS” (1988)
O Pensionato descortina cenas desde sua ao Rio, ressaltando embates entre valores religiosos, educacionais e culturais. Saudosamente relata que os coqueiros da Fazenda Gavião lhe acenavam adeus e procura mascarar, com um sorriso, a dor pela separação e o peso da saudade de seu pai, sua mãe e seu cão de estimação. Neste momento de partida o que falou mais alto foram lembranças de sua terra, onde criou raízes que ficaram em seu íntimo. E isto pode ser acompanhado nos versos finais do texto “Carta a Alagoinhas” (1988, p. 17):
Alagoinhas minha,/minha grande e doce companheira:/ que mais tenho para dizer a você/nesta carta?/ apenas… /que o vínculo de nosso amor/ é muito resistente/ (vem de longe…)/ e nem mesmo/ os atropelos do tempo/fazem abalar/ – repito isto ininterruptas vezes –/nossa infra-estrutura,/ tentando apagar estas e outras/gratas evocações…
Os versos reúnem informações sobre pessoas, costumes e lugares entrelaçados por uma linguagem subjetiva em seu mais alto grau, pois, conforme Elizeu Clementino de Souza (2006, p. 143): “[…] a arte de lembrar remete […] eleger e avaliar a importância das representações sobre sua identidade, sobre as práticas formativas que viveu, […] de situações fortes que marcaram escolhas e questionamentos sobre suas aprendizagens […]
Ao chegar ao Rio de Janeiro passou por inquietante experiência: morada coletiva com pessoas de culturas diferentes. Então, aprendeu a economizar o dinheiro que recebia do pai, iniciando-se a preocupação em estudar e trabalhar o mais rápido possível: “Vim para o Rio, sem muita experiência de morada coletiva, desse gênero. Só a conhecia nas férias, em Salvador, mesmo assim, por curto período de tempo, […] e, aqui, morando. Vai grande a diferença, e num misto de diversas nacionalidades, aqui”. (FEIJÓ, 1988, p. 17).
No pensionato apelidado “Bife Podre” situado à Rua Candido Mendes, na Gloria, demonstra seu temperamento forte, já que não atendia às normas (classificados pela escritora como “caprichos da dona”). Deste modo, burlava a vigilância, ‘surrupiava’ juntamente com as colegas a chave para tomar banho quente. Então, estabeleceu amizade com a encarregada das compras que, de vez em quando, colocava tudo em suas mãos, mantendo troca de favores. Em “Bife Podre” aprendeu coisas que jamais pensara ou desejara para si. Refere-se às colegas de quarto para as quais guarda comentários contundentes, porque inconcebíveis para as mulheres:
Sem ser puritana nem falsa moralista, certo pudor de mim mesma se apoderava. Talvez tivesse sido erro da educação que recebi, mas que fazer? Nesse belíssimo quarto 9, as duas companheiras quando trocavam de roupa, o faziam de verdade, permanecendo horas completamente nuas, defronte do espelho, embaixo de risadas com mil e um trejeitos, janelas abertas os rapazes lá de cima, de binóculo se regalando… (FEIJÓ, 1988, p. 21).
A mulher que considerava Alagoinhas “atrasada” mostrava-se estarrecia perante o que vivenciava, pois sua formação a afastava das colegas de pensionatos. As meninas, desde cedo, são educadas para papéis procriadores, suas brincadeiras são de bonecas e casinhas que as condicionam ao seu futuro papel de mães e donas de casa. Na atualidade, esse é um dos dilemas vividos pela mulher dividida entre carreira profissional e cuidado com filhas/os graças à orientação recebida para seu papel de mãe mesmo que nunca chegue a sê-lo.
Em o pensionato situado à Rua do Russel, chamavam-na provinciana, entretanto, isso não a incomodava e confessava que seu objetivo não era conquistar amizades. O Paraíso das moças era um local de encontro de mulheres e homens em busca de ganhar dinheiro com o corpo (“moças de aluguel”). Na linguagem atual seria um local de encontro para “garotas e garotos de programa”, com uma diferença: no Paraíso usavam alianças de noivado. Neste cenário, Maria Feijó viveu medo, ansiedade e decepção:
[…] é chegada a hora de dormir, mais ou menos, às 23 horas apagamos a luz […] e só depois verifiquei o nosso quarto servir de passagem para outros, que se multiplicavam num enorme e largo corredor, desembocando nos banheiros. […] À medida que a noite se esticava as evas, iam aparecendo. Lá para às tantas, entre vinte e quatro e uma da manhã, começava a chegar o adão de cada uma. […] Divãs… almofadas por todos os lados, no chão, inclusive. […] …não se distinguindo se havia duas ou uma pessoa, almofada ou gente… (FEIJÓ, 1988, p. 25-26).
Perante o vivenciado sai em busca de outra acomodação e a encontra no Flamengo, Rua Senador Vergueiro. Nesta instalação, classifica como “inferno sadio” (FEIJÓ, 1988, p. 28), porque a parte negativa recai sobre uma costureira, que só parava a máquina na madrugada. Pelo menos não era obrigada a ver e ouvir o que não gostaria como no pensionato anterior.
No pensionato da Rua Cândido Mendes também não foi fácil enfrentar a vida. Magra, possuía medo de ficar tuberculosa, pois trabalhava sem os cuidados de sua mãe (mimada), a substância alimentar era frágil e se mantinha com a mesada do pai. O penúltimo parágrafo da crônica… “paraíso das moças” acontece assim:
A vida da gente dá tantas voltas e novos acontecimentos vão surgindo, superpondo-se aos antigos, principalmente, se forem ruins, que somos obrigados a esquecê-los. Como não? Do contrário nos asfixiam. […] Este da ‘Rua do Russel’, […] só foi aqui enfocado […] para que fosse focalizado nestas páginas e, ainda mais, por achá-lo in-dis-pen-sá-vel pelo seu ineditismo na minha vida. (FEIJO, 1988, p. 34).
2.2 MULHER INTERIORANA EM CIDADE GRANDE: REAÇÕES (DES)FAVORÁVEIS
A escritora participava das festas alagoinhenses. Mas, as cariocas não lhe causavam admiração, porque não era isso que queria, não tinha ido ao Rio de Janeiro para estudar, por isso pressentia que a maioria das colegas não a suportavam e nem a compreendiam: “Elas me perturbaram tanto para estudar ou dormir, que logo acatei a ideia de estudar no refeitório […]” (FEIJÓ, 1988, p. 21).
Adorava enriquecer-se sem ferir suscetibilidades no ouvir, sentir, viver, menos protagonizar situações que ferissem sua formação: “O que me lembro […] um fato curioso, já usado por elas nos idas de 52: o ‘topless…’ Pioneiras, quero crer… E os ‘noivos’… em cuecas curtíssimas, tipo mesmo, sunga. Pioneiros, também? Hão de perguntar-me ‘E… como você viu tudo isso? (FEIJÓ, 1988, p. 26).
Amor, para ela, só tinha encanto a dois e longe dos olhos dos curiosos. Não se achava dona da verdade e imaginava que seu marido serviria de professor no que fosse preciso, porque teria mais encanto. Sofreu na mão de um noivo, pois “[…] exigia que eu deixasse de trabalhar, escrever (até cartas…), fazer concurso, estudar… sei lá de viver…” (FEIJÓ, 1988, p. 59). Terminou o noivado, mas surgiu em sua vida o homem com quem se casou para depois se separar.
À GUIZA DE CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sua escrita mostra uma mulher saudosista (“Essa cidade não pode fugir dos passos de minha vida, palmilhados na infância e grande parte na adolescência […] porque, na realidade, foi lá que nasci e vivi por quanto tempo”!). (FEIJÓ, 1988, p. 83). Se expressa em relação à Bahia, mas, deixa claro que não possui qualquer intenção em voltar, já que passou a apreciar festas e turbulências de grandes capitais, embora almeje o crescimento de sua cidade natal. Acreditava que as coisas que escrevia funcionavam como verdades, embora afirmasse que as lembranças seriam flashs intercaladas ao longo de suas histórias de vida. Gostava de escrever poemas e escrevia com rapidez. Um intelectual baiano sugeriu que escrevesse ficção, porque entraria mais rápido na Literatura Brasileira. Respondeu que adorava escrever biografia, mas que as coisas vividas não dizem nada. Ledo engano de Maria Feijó, pois os estudos sobre memória significam que as mulheres saiam do anonimato e tornem públicas suas intimidades. (LACERDA, 2003). Ao final de Alecrim do tabuleiro (1972, p. 128) e em linguagem carregada de subjetividade dedica sua escrita a Alagoinhas “[…] uma braçada, repito, de… alecrim do tabuleiro… Em teu colo a deposito com um perfume de passado…”
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. O romance de educação e sua importância na história do realismo. In: Estética da criação verbal. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003 (Biblioteca universal).
FAGUNDES, Tereza Cristina P. C. Mulher e pedagogia: um vínculo re-significado. Salvador: Helvécia, 2005.
FEIJÓ, Maria. Alecrim do tabuleiro:… crônicas evocativas de Alagoinhas. Rio de Janeiro/Guanabara: Max, 1972.
FEIJÓ, Maria. O Pensionato ‘Paraíso das moças’. Rio de Janeiro/Guanabara: Max, 1988.
DAMATTA, Roberto. A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
LACERDA, Lilian de. Álbum de leitura: memórias de vida, histórias de leitoras. São Paulo: UNESP, 2003.
SOUZA, Elizeu Clementino de. Pesquisa narrativa e escrita (auto) biográfica: interfaces metodológicas e formativas. In: Tempos, narrativas e ficções: a invenção de si. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006.
Professora do curso de Letras da UNEB/CAMPUS II
Revisora de textos da Casa do Poeta de Alagoinhas (CASPAL)
Membro da Academia de Letras e Artes de Alagoinhas (ALADA)