Ednaldo Soares
Bom dia a todos e todas. Agradeço aos organizadores do evento o convite para proferir esta palestra. É para mim motivo de alegria e regozijo. Sinto-me lisonjeado por estar aqui, a falar na cidade em que nasci, para conterrâneos. É um aprazimento diferente, quase inexplicável, que faz bem à alma e ao espírito.
Reitero, portanto, meu sincero agradecimento e valho-me do vocábulo hebraico para expressá-lo – “תודה” (/TODÁ/).
O que me propus lhes falar trata-se de uma breve visão histórica da poesia brasileira. Para iniciar, apoiando-me em explicações de diferentes estudiosos, procurarei dirimir a seguinte indagação: O QUE É POESIA?
Resumidamente, eis o que se tem como respostas:
Poesia é arte e técnica para exprimir em versos experiências, ideias, emoções, fantasias e similares.
Poesia é a maneira tipicamente utilizada por poetas para expressar autoanálises, confissões, preces, revoltas. No entendimento de Luciana Stegagno Picchio, cada poema é antes de tudo um mundo poético, olhos abertos sobre o eu e sobre o mundo que o contém e o condiciona; ao mesmo tempo, é látego e bisturi para o juízo, a condenação, a autocensura. Mas também é bálsamo de amor, tolerância, respeito ao próximo.
A poesia ou composição em versos caracteriza-se pelo uso de linguagem concentrada, em que as palavras são escolhidas por seus sons, expressão de força e por seus sentidos. Como expressão de força, cabe lembrar do que disse Napoleão Bonaparte: “le mot pain tue plus de mille baïonettes” (a palavra pão mata mais que mil baionetas).
Enquanto técnica, a poesia (não necessariamente) pode se valer da métrica, da rima e da aliteração, isto é, da “repetição de fonemas idênticos ou parecidos no início de várias palavras na mesma frase ou verso, visando obter efeito estilístico na prosa poética ou na poesia”.
No entanto, a poesia pode não fazer uso de nada disso e se valer do verso livre.
Eu vou me permitir fazer autocitações poéticas, que, pertinentemente exemplificam o que acabei de dizer, ou seja, sobre ambos os modos usados na expressão poética e que se contrapõem:
POIËTIKÉ (1)
Ednaldo Soares
Não conto as sílabas
para compor redondilhas.
Não vivo em ilhas
para construir impróprias pontes.
Não faço sonetos
porque perfeitos,
minha arte podem destruir.
Não sigo a rota de Cabral,
não entoo o cântico dos Anjos.
Na minha póiësis
um pouco cabe de tudo.
Meu nome,
tipo de pouco gasto,
só evoca rimas pobres,
mas em meus versos se encaixa
a vastidão do mundo.
—————————————————
SONETO DA TRANSGRESSÃO (2)
Ednaldo Soares
Leitor, por liberdade em meu verso
- cirro vagante, do céu visões mil –
recusam as mãos o instrumento frágil
pra tecer do que se não crê o anverso.
Pois que distante, o clássico submerso
por nova chama – poético ardil,
tanto mais práxis, menos som vibrátil –
retorna no tempo, sem ser diverso.
O primor contido – ledo engano –
aa formal clausura, apavoradora
pela mão a condução merecida.
Na perfeição de forma – maior dano –
o aviltamento, se pior não fora,
do verso livre, o desterro da vida.
(1) e (2) – SOARES, Ednaldo. de palavra em palavra/di parola in parola. Roma: Antonio Pellicani Editore, 1999.
Antes de mencionar os aspectos relativos à proposta sobre a visão histórica da poesia brasileira, permitam-me uma brevíssima reflexão sobre o início da literatura brasileira, imbricada com a própria história pós-descobrimento do atual país. Para tanto, apoio-me em minha querida amiga, já falecida, Luciana Stegagno Picchio, ciente de sua louvável expertise sobre a história de nossa literatura. Em seu livro de título símil, isto é, “Storia della Letteratura Brasiliana”, Stegagno Picchio nos fornece uma série de informações. Para início de conversa, afirma que o Brasil nasceu para a literatura em 26 de abril de 1500, quando o almirante português Pedro Álvares Cabral tomou posse em nome do rei de Portugal da nova terra descoberta no dia 22 do mesmo mês, a qual batizou de Terra de Vera Cruz.
Afirma também que o Brasil nasceu como objeto da literatura, visto pelo olhar dos viajantes que descreviam sua grandeza e diversidade; que, pouco a pouco, o colono passou à tentativa poética e laudatória do novo continente, valendo-se estilisticamente do que ocorria em Portugal.
Porém, que, apesar dessas iniciativas, até 1808, isto é, até antes da transmigração da corte portuguesa de Lisboa para o Brasil, aqui, então apenas uma colônia lusitana, vivia-se um singular isolamento literário, reflexo do isolamento geral imposto por Portugal, que incluía: fechamento dos portos a outras nações, ensino elementar idêntico ao do Reino, proibição da abertura de instituições de ensino superior, muito embora já houvesse universidades em outros países do continente americano, a exemplo das universidades em São Domingos e em Lima, criadas, respectivamente, em 1538 e 1551. Da Real e Pontifícia Universidade do México, também criada em 1551. Nos Estados Unidos, a Universidade de Harvard foi criada em 1636, Yale, em 1701, Princeton, em 1746. No Brasil, no entanto, não existia nenhuma escola de nível superior. Segundo o papa João Paulo II, tal inexistência ocorreu “por motivos históricos de todos conhecidos.” Daí, quando membros da Elite brasileira buscavam obter educação de nível superior, prioritariamente, iam para Portugal e laureavam-se em Coimbra.
Resumidamente, para Stegagno Picchio, a literatura brasileira nasceu adulta, sob direta influência portuguesa e, desde a literatura de informação pós-descobrimento (inclusive a literatura jesuítica), era barroca, com fisionomia própria.
Outro intelectual com a mesma visão acerca da origem de nossa literatura é o já falecido escritor e jornalista João Carlos Teixeira Gomes (Joca) – ex-membro da Academia de Letras da Bahia. Tanto Joca, quanto Stegagno Picchio concordam que o ato do nascimento do Brasil para a literatura é a carta de Pero Vaz de Caminha – literatura de informação. Segue-a a literatura jesuítica, por vezes plurilinguista, como acontecia em litanias marianas compostas em quadrinhas mistas, ou seja, com palavras em português e em tupi. Por exemplo:
O Virgem Maria
Tupã cy etê
Abá pe ára porá
Oicó endê gabê.
Feito esse parêntesis, passemos ao nosso tema propriamente dito.
Para dar uma rápida panorâmica da poesia no Brasil, vale a pena lembrar resumidamente as fases pelas quais passou a produção literária brasileira, desde o descobrimento até onde sofreu diretamente a influência europeia, principalmente de Portugal, isto é, até o Simbolismo.. Desde então, a literatura brasileira buscou seu próprio rumo, quer na temática, quer na forma de expressão e na linguagem.
Enquanto Portugal já possuía uma experiência literária registrada desde 1189, passando por vários estilos de época, a começar pelo Trovadorismo, Humanismo, Classicismo, Barro -co etc., o Brasil, descoberto somente em 1500, começou sua experiência literária através do que se pode chamar de literatura de informação, que durou até 1601. Passou dessa fase diretamente ao estilo Barroco, com cerca de 21 anos de atraso em relação ao Barroco português. E assim aconteceu também com as outras fases ou mudanças de estilos literários.
A diferença de tempo foi-se reduzindo até se chegar ao Modernismo. Exemplificando: em Portugal, o Simbolismo vai de 1890 a 1915, quando então se passou ao Modernismo. No Brasil, o Simbolismo vai de 1893 a 1902. Dali se passou a uma fase Pré-modernista (1902 a 1922). A partir de 1922 começou o Modernismo.
As características principais do Pré-Modernismo brasileiro foram:
- o interesse pela realidade brasileira (de caráter social) e
- a busca por uma linguagem mais simples e coloquial.
O poeta mais representativo dessa fase foi Augusto dos Anjos, que não foi um poeta social, mas agressivo no vocabulário (uso de termos antes tidos como antipoéticos: germe, escarro etc.) e de visão dramaticamente angustiante da matéria e do cosmo.
“Toma um fósforo. Acende teu cigarro! / O beijo, amigo, é a véspera do escarro. / A mão que afaga é a mesma que apedreja.”
O Modernismo no Brasil começou com a Semana de Arte Moderna (ressalva-se: “foram os modernistas que fizeram a Semana de Arte Moderna e não a Semana que criou o Modernismo brasileiro”), em fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo. Essa primeira fase durou até o final da década de 1920. Os artistas mostraram obras com linguagem afinada com as correntes estéticas do começo do século e iam de encontro ao racionalismo e ao objetivismo das correntes científicas e literárias ainda predominantes na cultura desde a segunda metade do século XIX. Defendia-se o irracionalismo, valorizavam-se os estudos psicológicos do neurologista e psiquiatra austríaco Sigmund Freud e a teoria intuicionista do filósofo e diplomata francês Henri Bergson (Prêmio Nobel de Literatura de 1927), ambos pensadores que rejeitavam a análise positivista defendida pelo filósofo francês Auguste Comte e buscavam uma compreensão mais subjetiva e interior do ser humano e de seus problemas.
Os modernistas brasileiros desse primeiro momemto apresentavam uma arte que estava em consonância com o grande movimento internacional de renovação de ideias, sobretudo com os estilos de vanguarda. Ouçamos o que poetizou Oswald de Andrade, em 1925:
“Quando o português chegou / Debaixo duma bruta chuva / Vestiu o índio. / Que pena! / Fosse uma manhã de sol / O índio tinha despido / O português.”
Na primeira fase do Modernismo, a poesia e a prosa têm os seguintes pontos em comum:
- liberdade formal (abandono de formas fixas como o soneto), incorporação da fala coloquial;
- atitude combativa e irreverente;
- humor;
- incorporação do cotidiano;
- metalinguagem;
- aproximação da poesia e da prosa.
Os principais poetas são: Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo.
A segunda fase modernista vai de 1930 a 1945 e se caracteriza, no geral, pela manutenção da análise objetiva da realidade brasileira. Na poesia, tem-se mais:
- o amadurecimento da obra de poetas da primeira fase, que continuam produzindo;
- o aparecimento de uma poesia de caráter espiritualista (Jorge de Lima, Murilo Mendes, Cecília Meireles);
- a utilização da ironia mais refinada e sutil;
- a universalização do tema: reflexão sobre o destino do ser humano;
- o uso do verso livre que se incorpora definitivamente na poesia brasileira;
- o regionalismo;
- a poesia lírico-amorosa.
Os principais poetas são: Carlos Drummond de Andrade, Cecilia Meireles, Jorge de Lima, Vinicius de Moraes, Murilo Mendes.
A terceira fase do Modernismo brasileiro, conhecida como Pós-Modernismo, vai de 1945 até a atualidade – era pós-segunda guerra, era atômica, da informática, de grandes avanços na medicina e na psicologia. O homem pressionado por esse ritmo, explora o próprio homem (“Homo Homini Lupus”) até às profundezas conhecidas e desconhecidas do eu.
A poesia, que com Drummond, nos anos 1930, tinha descoberto a potencialidade da palavra, passa a explorar essa potencialidade a nível sintático, semântico e gráfico, com a geração de 1945. O poeta passa a meditar sobre o ato de escrever, rejeita a inspiração (mais transpiração, menos inspiração) e assume uma postura de objetividade diante da escrita.
A poesia dessa fase tem como características:
- preocupação formal;
- procura pelo “eterno”;
- linguagem criadora;
- preocupação com a realidade social;
- poesia mais contida;
- maior rigor artesanal.
Os principais poetas são: Murilo Mendes, Jorge de Lima, Cassiano Ricardo, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto – o mais representativo dessa fase.
A poesia concreta teve início em 1952, quando Décio Pignatari e os irmãos Haroldo e Augusto de Campos lançaram a revista-livro “Noigrandres” (título esotérico, apanhado de Arnaut Daniel) com um programa de experimentação poética vanguardista de grupo. Ai influências vinham de Mallarmé, Ezra Pound, James Joyce, Majakovskij, Sousândrade e até de Gregório de Matos. A característica dessa poesia é a atomização da palavra.
O movimento concretista se dividiu e deu origem a vários outros: neoconcretismo, práxis, vereda, Ptyx (introduzido por Drummond, influenciado por Mallarmé), poema-processo. Alguns desses movimentos atraíram modernistas consagrados nas fases anteriores. Nessa diáspora da vanguarda encontram-se Ferreira Gullar, Reinaldo Jardim, Cassiano Ricardo, Mário Chamie, Lauro Juk, Mauro Gama e tantos outros.
Poesia Pós-1960 (período da ditadura militar) – As produções literárias da década de 1970 até a década de 1990 ainda são alvo de estudos mais aprofundados; talvez pela falta de distanciamento histórico que permita um enfoque mais abrangente e crítico, e a dúvida quanto à qualidade dessa produção, em virtude das condições de repressão e de censura a que foi submetida. Há, porém, nesse período, a busca por novas expressões e a euforia do “fazer” poético aliadas à mais apurada reflexão da realidade. Surge, daí, o poema-processo – dissidente da poesia concreta -, caracterizado pela diversidade de técnicas e de proposições, objetivando mostrar que o poema é físico e até mesmo táctil, em sua visualidade gráfica.
Alguns poetas dessa geração são: Mário Quintana, José Paulo Paes, Paulo Leminski, Alex Polari, Antônio Carlos de Brito (Casaso), Adélia Prado, Ricardo de Carvalho Duarte (Chacal) e outros surgidos entre 1970 e 1990.
Paro minha reflexão no século XX. A poesia brasileira do início do século XXI, ao que parece, tem o olhar no espelho retrovisor. Há um pouco de tudo. Deixo para mais adiante uma reflexão mais cuidadosa desse período. Cabe aos estudiosos e à crítica se debruçarem na análise da produção poética e literária atual.
Com o olhar no retrovisor, é que nas reflexões poéticas constantes do meu livro “O Desconhecido”, a ser lançado aqui hoje, está inserido um pouco do que falamos.
Para concluir, cito alguns verso de poetas distintos, independentemente de quando foram escritos:
“Estupendas usuras nos mercados: / Todos os que não furtam, muito pobres; / eis aqui a Cidade da Bahia.” (Gregorio de Matos); “O sol do Imperador / O som do Imperador / Os fãs do Imperador / O fim do Imperador.” (Murilo Mendes); “Eu acabo é perdendo a paciência e vou-me embora: / Salto a janela de noite e fujo pelo jardim. / Quando virem, sumi por esse mundo afora, / Corumbá, Cuiabá, Pocoré, Coxim.” (Ribeiro Couto); “Deus, oh Deus, ondes estás, que não respondes / Em que mundo, em que estrela tu te escondes / embuçado nos céus?” (Castro Alves); “Os miseráveis, os rotos / são as flores dos esgotos” (Cruz e Souza); “No aeródromo, o aeroplano / subiu, triunfal, na tarde clara, / grande e sonoro, como o sonho humano!” (Agenor Barbosa); “O zumzum de Zeus / o bômbix / o Ptyx” (Carlos Drummond); “secosecoseco Rio/ secoseco Rio seco / seco Rio secoseco / Rio sesosecoseco / Eco / seca” (Ednaldo Soares); “Miserável ser, a ninguém enganas; / o amor que proclamas / é pura quimera. / Não és gente; és apenas fera.”(Ednaldo Soares); “Parece que a corrupção tomou conta do Estado Brasileiro, / que não há mais em quem confiar.” (Ferreira Gullar); “Todos ocupados em levar avante a vida / e eu sem saber o que fazer com ela, / se a finco no coração ou atiro pela janela.” (Paulo Hecker Filho)
Senhoras e Senhores, a poesia é a parte mais sublime de toda a literatura. Quem não gosta de poesia não sabe amar.
Muito Obrigado
Referências:
Diversos estudos acadêmicos (livros, artigos, dissertações e teses).