Determinadas visões compartilhadas na fotografia artística contemporânea são fruto de uma conquista obtida por fotógrafos que no passado propuseram temas não convencionais para a época. A resistência e o engajamento em abordar, subjetivamente, assuntos proibidos e censurados pela sociedade contribuíram, de certo, para a aparente liberdade de escolha de conteúdos atuais.
No processo de aceitação da fotografia artística, certas abordagens e temas foram fundamentais para o processo de reconhecimento do potencial artístico da fotografia. A princípio, a abertura dada pelo historiador da arte e então diretor do departamento de fotografia do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, John Szarkowski, nos anos 1960, foi importante para a visibilidade de novos talentos fotográficos.
Ele criou uma galeria exclusiva de fotografia e incentivou vários fotógrafos a mostrarem seus portfólios. A partir desta iniciativa, foi possível ver nos espaços expositivos consagrados nos Estados Unidos, na época, trabalhos de fotógrafos que de maneira peculiar passaram a registrar aspectos sociais jamais tratados. Entre os fotógrafos que Szarkowski incentivou, está o nome de Diane Arbus. Ela foi uma das primeiras fotógrafas a quebrar tabus, assimilados com padrões morais e convenções sociais, trazendo em suas imagens o universo marginalizado de pessoas.
A fotógrafa norte-americana teve um estúdio fotográfico e juntamente com o seu marido, Allan Arbus, se especializou em moda, trabalhando para revistas importantes como Vogue, Harper ‘s Bazaar, entre outras. Posteriormente, o casal fechou o estúdio e Diane Arbus seguiu com uma carreira própria, passando a se dedicar a retratar prostitutas, homossexuais, transsexuais e artistas circenses, indivíduos fora dos padrões de beleza estabelecidos pela sociedade de então.
A reação do público em ver estas imagens foi definida por alguns autores como um misto de estranheza e fascínio. Os retratos incomuns à primeira vista eram difíceis de ser evitados, pois despertavam curiosidade. Nas fotografias, é possível perceber a conexão íntima, natural e empática de Diane Arbus com seus modelos. Os olhares de cumplicidade dos retratados e da fotógrafa ultrapassam os limites da cena e alcançam o espectador.
Diane Arbus inaugura um estilo fotográfico intimista, subjetivo e enigmático, aspectos que serão associados a gerações seguintes, a exemplo dos artistas classificados pela crítica como Escola de Boston.
O grupo se conheceu no Massachusetts College of Art, em Boston, no final dos anos 1970 e 1980. Dentre os principais integrantes estão Gail Tracker, Jack Pierson, Mark Morrisroe, David Armstrong, Philip-Lorca DiCorcia e Nan Goldin. Esta última, ficou conhecida pelos seus ensaios, onde sua intimidade é revelada por instantâneos fotográficos como um diário pessoal, constituído por imagens.
Suas histórias e narrativas tratam de suas experiências vividas com seus amantes, amigos e família. Os registros espontâneos de suas fotografias que abordam agressões físicas, dependência de drogas, etc, fogem do modelo do sonho americano – a citar uma de suas séries mais conhecidas, The ballad of sexual dependency.
Os artistas considerados da Escola de Boston desenvolvem seus trabalhos de maneira independente e com estilos próprios, contudo, eles possuem certas afinidades nas escolhas de temas censurados que envolvem a intimidade da vida cotidiana.
Indivíduos invisíveis
No Brasil, também na mesma época, surgem novas possibilidades de enxergar o real com o artista Miguel Rio Branco. Sua série fotográfica intitulada Maciel expôs temas pouco convencionais, descortinando ao público questões que o poder público na época se recusava encarar.
Em uma das suas principais séries, o artista retratou a antiga comunidade do Maciel, situada em um dos lugares mais importantes para a história do Brasil, o Pelourinho. Ele retratou o cenário da desigualdade social e decadência do local com seus habitantes, em um ambiente cercado de abandono, violência e erotismo.
As imagens apontam para a realidade da vida de indivíduos invisíveis e, ao mesmo tempo, põe em xeque os limites entre o público e o privado. As escolhas formais do artista, estratégias estéticas e conceituais, seja na luz ou saturação das cores, reforçam uma narrativa subjetiva.
A obra de Miguel Rio Branco é referência para muitos artistas na atualidade, a exemplo de Hirosuke Kitamura, conhecido como Oske, que vive há cerca de 30 anos em Salvador. De maneira singular, ele fotografou também uma área de prostituição no centro de Salvador.
A partir dos anos 2000, Oske visitou durante cerca de 15 anos várias casas de prostituição que existiam na Ladeira da Montanha e Conceição. Dessa experiência, surgiram algumas séries que, sem dúvidas, contribuíram para um amadurecimento estético do fotógrafo e o seu reconhecimento no meio artístico.
Assim, umas de suas obras passaram a fazer parte do acervo da décima primeira edição da Coleção Pirelli. Posteriormente, ele foi um dos selecionados na sexta edição do Prêmio Pierre Verger e, na oitava edição, foi premiado na categoria Livre Temática e Técnica, com o ensaio intitulado Atração gravitacional, que reúne fotografias de diversos lugares que o artista percorreu desde o início de sua carreira.
Em algumas de suas séries é perceptível notar sentimentos sufocados manifestados nos corpos anônimos dos fotografados. As emoções expressas de muitos de seus modelos ganham mais destaque do que a simples aparência.
“Observo mais coisas marginais (elementos e pessoas) que são menos visíveis na sociedade. Tento tratar as imagens registradas para outra sensação metafórica, a exemplo, dor, grito, sufocamento, solidão, angústia, medo, abismo”, afirma ele.
O artista diz se interessar pelo tempo perdido nas complexidades caóticas do mundo. Para ele, as coisas boas e ruins não estão separadas e sim misturadas, sendo difícil sua clara definição.
Outra marca em seus trabalhos é a subjetividade, utilizando recursos técnicos como longa exposição. Muitas vezes, seus motivos aparentam um rastro de visualidade, a nitidez é confundida com borrões, manchas e sombras revelando uma certa ambiguidade. Enfim, Oske possui um estilo visceral, sua poética nos aproxima da vulnerabilidade humana.
A crueza de determinados aspectos da vida nos afasta de enxergar o que não queremos, contudo, a arte, especialmente o trabalho destes fotógrafos, nos convocam a sairmos de nossas bolhas e refletir sobre o inevitável.
*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE
*Doutora em Artes Visuais, professora de fotografia na Escola de Belas Artes (Ufba)