Demorei a tomar a escrita desse texto sobre o romance de Luiz Eudes, “Cangalha do Vento”. Intrigante começar um texto dizendo dele quando ele se inicia e mal existe. Parece que estou começando do fim. O posfácio traz comentários muito bons de especialistas em literatura, comecei a lê-los e parei, não sou um crítico literário. Resolvi então fazer o mesmo procedimento adotado na “análise” que desenvolvi sobre Essa Terra de Antônio Torres (Uma estratégia de leitura da subjetividade em “Essa Terra”), 160 páginas depositadas em uma prateleira da Uneb – Campus II. Decidi me colocar como leitor e fã e tentar contextualizar a narrativa culturalmente. Afinal, essa é minha área de pesquisa.
Cangalha do Vento para mim é o nome que Luiz Eudes deu às memórias, às suas traduzidas nas dos seus personagens. Ser influenciado por Antônio Torres é logicamente compreensível, ele é um imortal e, de fato, um dos maiores da nossa literatura – levando em conta que a admiração e amizade com o escritor já vem de longe, marcando uma convivência, iniciada há trinta anos, bem antes do título da Academia Brasileira de Letras. Torres está para o romance como Glauber Rocha está para o cinema e Caetano, Gil, Torquato Neto, Tom Zé e Capinan estão para a música. Eles inauguraram a contemporaneidade nos escombros da modernidade.(Se bem que a primeira música considerada concretista é “Romaria” de Renato Teixeira e não “Tropicália” como se pensa – curiosidades enciclopédicas)
O que Eudes faz, então? dá continuidade a Torres, mostrando um híbrido de romance e conto. Torres, sobretudo em Essa Terra, trouxe a síntese para o romance e Eudes prosseguiu com a síntese de uma maneira própria, não poetizando a prosa, como faz muito Torres, mas adotando a poeticidade como arcabouço da prosa pela estrutura do conto dentro do contexto do romance.
A Montanha Mágica de Thomas Mann é o oposto, um livro de quinhentas e tantas páginas que fala da paixão de um rapaz tuberculoso por uma mulher idem, chega-se na página 300 e ele sequer pegou na mão dela. Pode-se dizer simplistamente que você toma Essa Terra, retira Faulkner e se tem a Cangalha do Vento. Contudo é bem mais que isso. Eudes não se intimida com a sombra do mestre e acho que então se encontra com Cristiane Alves, uma excelente poetisa do Junco. Ele faz ainda como Torres, junta a prosa com a poesia, mas vai além, como disse, o faz com uma delicadeza da arte japonesa. A narrativa é rápida, exagerando, um personagem pode flertar, casar, ter filhos e netos em um só parágrafo. Isso seria a morte do romance, mas é a porta para seu brilhantismo. Por isso demorei a escrever o que escrevo, porque fui tomado pelo romance e dizia para mim: não é possível, porque foi muito arrebatador e contagiante.
Tudo começa com Aristeu, a mulher morre em seus braços, a narrativa dá um feed back imediato e vai para sua migração para o norte, movido pela febre da extração da borracha (látex) onde teve como companheiros: “um índio desconfiado como amigo, o ladrão de gado como colega de trabalho, o traficante de escravas brancas como seu chefe, o matador de aluguel como companheiro de farra e as coxas morenas das índias e das prostitutas como refúgio e consolo”. É meio faroeste caboclo de Renato Russo no seu melhor sentido.
Você pode até enxergar, em tão poucas palavras, os conceitos de “campo” e de “posição” de Bourdieu, é a concepção estética da poesia em verso, marcado, ouso dizer, pelo que direcionou os concretistas. Depois, o retorno, o trem, a tropa de burros, o sanfoneiro Guidório e o reencontro com a prima Tereza, o homem do Junco é fogoso por natureza e as mulheres correspondem. Tereza que aparece no início do livro, sem querer e já dando spoiler.
“Aristeu engoliu uma saliva grossa quando os olhos da mulher tornaram-se oblíquos, de um brilho febril de que veem a face irredutível da morte”. As palavras irredutível e morte parecem que foram feitas uma para a outra, mas nunca tinha pensado nelas juntas antes, para isso servem os poetas.
Seu filho José Paulo prossegue a história, o causo. Cristiane Alves defende a tese de que o Junco produz literatura graças aos contadores de causo e Torres dá crédito também ao excelente nível educacional da pequena cidade. Eudes concorda com ambos, são 80 escritores com livros publicados, um número per capto relevante em um âmbito até nacional. Lá sempre houve cordelistas, embora a prosa predomine, o que pode explicar a rápida adesão ao modernismo e ao contemporâneo. Lá também nasceu o grande jornalista Humberto Vieira.
Mas voltando ao José Paulo, ele como bom junquense migra. O primeiro pensamento daquele povo é migrar, é como prisioneiro de guerra pensando em fugir. José Paulo, mais refinado, já tem sentimentos mais claros, percebe o balanço entre a estranheza com a cidade grande e a saudade (a cangalha do vento),“as lembranças abrolhavam como um cardume à flor da água”. “São Paulo dá o ouro, mas tira o couro”. Aqui eu acho que está o mais interessante, Eudes diz o que Torres não disse com Nelo, por ser um homem endurecido, e com Totonhim, por vivenciar tudo sem uma consciência tão aguda. A saudade dos personagens de Eudes é maior que a dos personagens de Torres. Em Eudes, a saudade e a poética vêm para o primeiro plano. Por isso em minha pesquisa considerei Nelo um personagem conceitual como entende Giles Deleuze. José Paulo manda buscar Maria no Junco, uma paixão de juventude, para se casarem. Importante o encontro com o irmão Israel, envolvido com sindicato e perseguido pela ditadura militar.
Então vem estória do filho/neto Fernando, o livro tem essa levada bíblica, a terra, a terra prometida, a terra herdada, perdida e reconquistada, mas sobretudo se estabelece com ela uma forte relação de amor.
“A terra parece ter vida própria. Não só parece mas tem. Tem vida e tem fome, muita fome, principalmente daqueles que se julgam os seus donos. A terra nos pare, nos alimenta, nos cria e nos engole de volta. Nós não somos donos da terra. Antes, sim, a terra que é nossa dona”.
Acho que esse trecho equivale poeticamente a bela abertura glauberochiana de Essa Terra, do homem em seu cavalo atravessando o descampado com o sol a pino. Novamente o amor da infância, dessa vez, Cristiane. Aqui se mostram as peculiaridades do Junco, o banho no açude, construído pelo prefeito visionário, os causos dos tesouros enterrados. As festas, as caçadas de ´preás, a referência a Dom José Cornélio, bispo da diocese, muito querido. As viagens religiosas organizadas por Maria Venância, a marinete(como chamavam o ônibus), o banho de mar em Madre de Deus. A botica do Zé Perninha. O armazém de João Vieira, que soltou o cardeal(passarinho) de “vinte e três vius”.
Fernando já é do tempo da televisão e do início da internet, estava mais convicto que seu pai do término dos tempos de migração. Hoje Eudes revela que o destino da migração é Alagoinhas, o drama se reduziu, as tensões se dissiparam. Fernando viu seu pai se virando com a terra com o plantio de cajueiros e Eudes fala da importância do incentivo à agricultura familiar. Ficou também mais nítido, para Eudes e para Fernando, o valor do sentimento de pertença, de compartilhar uma memória afetiva, um modo peculiar de construir a realidade que dá sentido à vida e como tudo isso é universal. Hoje você pode migrar sem medo de perder suas raízes ou de não se adaptar a terra estranha. O junco permanece onde você for, a cangalha do vento estará sempre pronta para carregar os fardos da vida. A identidade e a subjetividade nos constituem e constituem a todos, isso é cultura, e isso é o junco que está em todo o ser humano.
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