Uma noite inesquecível (no dizer de alguns, “fenomenal”), num ambiente onde se preservam objetos de arte – patrimônios artísticos e culturais: o museu – com a presença maciça de acadêmicos.
Foi neste ambiente que proferi a palestra de abertura do evento, cujo conteúdo compartilho abaixo para conhecimento de quem possa se interessar pelo assunto.
ARTE E CULTURA: A IMPORTÂNCIA DA SEMANA DE ARTE MODERNA PARA A EXPRESSÃO ARTÍSTICO-CULTURAL BRASILEIRA [1]
Ednaldo Soares [2]
BOA NOITE, Senhoras e Senhores. Na pessoa do Magnífico Reitor da Universidade Federal da Bahia – Dr. João Salles, saúdo a todos(as) e agradeço ao Prof. Dr. José Cláudio pelo convite. Falarei brevemente sobre arte e cultura e a importância da “Semana de Arte Moderna” para a expressão artístico-cultural brasileira.
Começo parafraseando a secular afirmação do Manifesto do Partido Comunista (na verdade nem era um partido, mas apenas um grupo clandestino de refugiados) de que “a história das sociedades até os nossos dias, não foi senão, a história das lutas de classes”; ao invés disso, afirma-se que a história das sociedades até os nossos dias é muito mais a história das expressões artísticas e culturais das sociedades e de suas modificações ao longo do tempo.
“Что такое искусство?” (/Chto takoye iskusstvo?/), ou seja, o que é ARTE? – questionou León Tolstói. Ele mesmo respondeu e recomendou: “Arte é um dos meios que une os homens [e] deve ser um órgão moral da vida humana”.
Em sentido amplo, arte é qualquer atividade humana baseada em medidas técnicas ou normas de conduta, derivada de estudo e da experiência. Em sentido restrito, arte são as atividades humanas (individuais ou coletivas), que se referem a formas criativas de expressão estética, incluindo as artes figurativas ou belas artes, isto é, a arquitetura, a escultura, a pintura.
A arte é “um tipo de comunicação que acompanha a humanidade desde os primórdios”, que evoca percepção. Em si mesma, a Arte não é absolutamente uma verdade. Sendo assim, reitera a afirmação de Gustave Flaubert de que “il n’y a pas de vérité. Il y a juste une perception”, ou seja, que “não há verdade; só há percepção.” Será possível também afirmar que “não há arte; só há percepção”? Não se tem a resposta.
Sabe-se, no entanto, que o termo arte tem assumido diversos significados. Por exemplo: na antiguidade, para os gregos, arte era prevalentemente a habilidade de operar com as mãos (“τέχνη” – /téchne/); e para os romanos, o termo “ars” se referia à atividade com fins práticos. Atualmente, fazer arte também significa traquinar. Porém, foi no medievo, que a distinção entre artes liberais e artes aplicadas se afirmou e se passou a se distinguir os aspectos técnicos dos mais propriamente estéticos, nas obras de arte.
Abre-se parêntesis para esclarecer o seguinte: na Idade Média, as chamadas Artes Liberais se referiam às disciplinas acadêmicas ou aos ofícios exercidos por indivíduos livres. Em número de sete, as Artes Liberais se dividiam em dois grupos: o “TRIVIUM”, que reunia a Lógica ou Dialética, a Gramática e a Retórica, e o “QUADRIVIUM”, composto pela Aritmética, Música, Geometria e Astronomia ou Astrologia Clássica. As Artes Liberais se opunham às Artes Mechanicae, próprias dos escravos ou servos.
A Universidade Medieval se valia das Artes Liberais para preparar o aluno ao aprofundamento acadêmico nos três principais campos do saber estudados na época: Direito, Medicina e Teologia. Fecha-se o parêntesis.
Todavia, foi durante o Renascimento, que a distinção entre Artes Liberais e Artes Aplicadas se superou; ocasião em que todos os campos da produção artística foram libertos dos aspectos de utilidade mais imediata e a arte se tornou uma forma criativa do conhecimento e da pesquisa do belo, sendo este (o belo) entendido como compostura e rigor formal.
A arte, desde sempre (mesmo lhe tendo faltado a consciência em certos períodos), se configura como constante busca por novas linguagens, com estruturas e formas de expressão completamente autônomas, que extrapolam as tradicionais distinções entre campos, gêneros e épocas. Na crítica genealógica da religião e da moral cristã feita por Nietzsche, em detrimento do Cristianismo, a arte assume o protagonismo salvador, pois, para Nietzsche, “wir haben Kunst, damit wir nicht an der Realität sterben”, ou seja “a arte existe para que a realidade não nos destrua”. Para o filósofo, “a arte é a grande possibilitadora da vida, a grande aliviadora da vida, o grande estimulante da vida.”
No paganismo grego, inspirada em Apolo e Dionísio, havia crença em dois impulsos artísticos: o apolíneo (voltado à sabedoria, à racionalidade, às artes plásticas, à busca da perfeição) e o dionisíaco (identificado com o êxtase na música, na dança, nas paixões, no caos, na loucura, na fúria sexual). Exemplo do impulso apolíneo é a epopeia de Homero em sua busca por ordenação do “caos da vida” diante do “devir e do absurdo da existência”. Os gregos sintetizaram ambos os impulsos, a fim de trazer “equilíbrio entre a ilusão e a verdade, entre a aparência e a essência”. Fato, que, para alguns filósofos, cria a mimese – “imitação de ações humanas (assim como de toda arte poética)”; enquanto para outros provoca a catarse ou a “purificação do espírito do espectador através da purgação de suas paixões”.
A arte está irremediavelmente vinculada à cultura, isto é, a um complexo de cognições, tradições, procedimentos técnicos, comportamentos e similares, transmitidos e usados sistematicamente, característico de um grupo social, de um povo, ou de toda a humanidade.
CULTURA, portanto, é o conjunto das tradições científicas, históricas, filosóficas, artísticas, literárias de um povo ou de um grupo de povos. Para Max Weber e, por conseguinte, para a sociologia contemporânea, cultura e civilização são processos paralelos, em que a cultura compreende as manifestações criativas e os valores de cada sociedade e a civilização coincide com o progresso técnico e científico.
Ao se afirmar que a história das sociedades é a história de suas artes e culturas, também pode-se afirmar que a criação do mundo, em sua abrangência cosmológica e cosmogônica, foi um período de expressão puramente artística e um acontecimento estético, em que o belo se manifestou na construção do universo, via arquitetura; na criação do homem, via escultura (modelagem do pó argiloso); e na percepção visual da natureza, via pintura em diferentes matizes. Da expressão visual do belo vem o constructo “beleza” e o adágio “a beleza está nos olhos de quem vê.”
Ora, por falar em arte, quando foi que a ARTE surgiu no Brasil? Confessa-se que não dá para aceitar a retórica de que foi a partir da chegada dos europeus. Essa rationale, de acordo com Ariano Suassuna, nega a arte dos povos autóctones, aqui residentes desde antes da chegada dos colonizadores e/ou invasores; seja ela a arte rupestre (pré-histórica), seja ela a arte indígena (pré e pós-descobrimento).
É fato louvavelmente notório que as missões artísticas europeias ao Brasil e as idas de artistas brasileiros à Europa difundiram linguagens artísticas de além mar e influenciaram a arte nacional. Todavia, com o tempo, artistas nacionais passaram a buscar uma percepção cognitiva de arte mais alinhada à cultura brasileira. Por exemplo, o Manifesto Antropofágico, de 1928, em que o shakespeariano “to be or not to be: that is the question” (ser ou não ser: eis a questão) deu lugar ao nativismo oswaldiano – “Tupy or not Tupy: that is the question” (Tupy ou não Tupy: esta é a questão).
Ao se voltar o olhar para a “Semana de Arte Moderna”, cabe afirmar que a inquietação e busca por uma arte “puramente” nacionalista é anterior à “Semana de 22”, dado que a revolução modernista brasileira dava sinais desde 1914, alicerçada no futurismo italiano, isto é, no Manifesto de Filippo Tommaso Marinetti, publicado em Paris, em 1909, traduzido na Bahia por Almáquio Dinís, em 1910, e divulgado no Rio de Janeiro por Graça Aranha, em 1920.
A inquietação artística nacionalista tomou vulto e culminou na “Semana de Arte Moderna”, ocorrida em São Paulo, de 11 a 18 de fevereiro de 1922. Nesse sentido, entende-se a “Semana” como ponto de chegada e não de partida – argumenta Wilson Martins – porque “foram os modernistas que fizeram a Semana de Arte Moderna e não a Semana de Arte Moderna que criou o Modernismo [brasileiro]”. A referida inquietação modernista buscou a renovação da linguagem, o rompimento com o passado (considerado antiquado), o incentivo à criatividade artístico-literária (tida como rebeldia).
1922 foi o ano das comemorações do centenário da independência política do Brasil. A princípio, a “Semana de Arte Moderna” tinha de ser concebida como um antifestival das celebrações oficiais e a “rebeldia” das manifestações ocorridas no Teatro Municipal de São Paulo contou com três exposições: (1) de esculturas; (2) de pinturas; e (3) de arquitetura.
As grandes atrações foram os espetáculos dos dias 13, 15 e 17 de fevereiro, respectivamente, dedicados à “Pintura e Escultura”, à “Literatura e Poesia” e à “Filosofia Moderna no Brasil”. O evento teve um potencial patrocinador – Paulo Prado –, que se juntou ao grupo, por intermédio de Graça Aranha.
Graça Aranha, definido por Oswald de Andrade como “protomártir da nova era” e por Di Cavalcanti como “[aquele que] deu um ar de seriedade ao evento”, por ele ser um dos membros da Academia Brasileira de Letras (ABL), foi quem fez a conferência na abertura do evento, intitulada “Emoção estética na arte moderna”. Do Rio de Janeiro, a convite de Graça Aranha, Ronald de Carvalho conferenciou sobre “A pintura e a escultura moderna no Brasil”.
No entanto, o público percebeu o caráter provocatório das manifestações e, na segunda noite (15/02), houve tumulto, subjugando a voz de Menotti del Picchia, ao tentar explicar a nova estética do movimento, reiterando a rejeição do velho rótulo de futurismo. As exposições causaram frisson e provocaram reações conservadoras; as mais violentas contra a nova literatura e a pintura. Já Villa-Lobos (outro artista do Rio de Janeiro, convidado por Graça Aranha) foi escutado com tranquilidade, apesar da polêmica “Chopin – anti Chopin”, nos bastidores do festival.
Obviamente, nem tudo foram flores para os participantes da “Semana de Arte Moderna”. A pintora Anita Malfatti, que estudou Belas Artes em Berlim, se especializou nos Estados Unidos e teve contatos com Juan Gris e Marcel Duchamp, foi atacada por Monteiro Lobato, para quem o modernismo brasileiro não passava de arte caricatural, provocadora de ideias cômicas no espectador. Di Cavalcanti foi outro artista, cujos desenhos e quadros foram considerados estapafúrdios e observados com “gloriosa distância”, inclusive por Graça Aranha.
Vale ressaltar que os participantes da “Semana de Arte Moderna” eram artistas acadêmica e intelectualmente preparados. Conforme menção anterior, Anita Malfatti estudou na Alemanha e nos Estados Unidos e Victor Brecheret, apelidado de “Rodin brasileiro”, fez seis anos de estudos acadêmicos em Roma, na escola de Dazzi. O evento também contou com poetas e escritores, que se tornaram expressões literárias nacionais.
Mas afinal, qual a importância da “Semana de Arte Moderna”? Em resposta, sabe-se da atração exercida e da junção de outros artistas ao grupo original, a exemplo de Tarsila do Amaral, autora da pintura simbolicamente a mais importante do movimento modernista brasileiro – o Abaporu.
Outros, que se juntaram ao grupo, foram: no Rio de Janeiro, Manuel Bandeira, apelidado por Mário de Andrade de “João Batista da nova poesia”; Ronald de Carvalho – um ex parnasiano; Ribeiro Couto; Renato Almeida, Sérgio Buarque de Holanda; e outros. Entretanto, Graça Aranha, que apesar do apoio inicial aos modernistas, afastou-se do grupo. Daí, ter sido severamente criticado por Oswald de Andrade e tachado de “interesseiro”, “interessado” e “interessista” por Mário de Andrade. Lembra-se que Graça Aranha, embora tenha sido cofundador da Academia Brasileira de Letras, anos depois se desfiliou, afirmando que a criação da ABL foi um grande erro.
Apesar da brevidade deste relato histórico, é possível afirmar que a importância da “Semana de Arte Moderna” não está (como se pensa) no criticado primitivismo da poesia “Pau Brasil”, de Oswald de Andrade, nem em seu “Manifesto Antropófago” ou “Antropofágico”, de inspiração marxista, ou em seus escândalos pelo simples prazer de escandalizar. Tampouco está no interessante “Prefácio Interessantíssimo”, de Mário de Andrade, ou em qualquer outra obra, isoladamente. Tudo isso continua importante promotor de movimentos nativistas. A “Semana de Arte Moderna” tem valia e dá sua grande lição, por ter sido revolucionária e fomentadora de mudanças. Desde então, a percepção cognitiva de arte, em seu real “leitmotiv” embasado na cultura nacional, passou a incentivar a mudança, toda vez que o artista se sentir insatisfeito com o “statu quo” da linguagem utilizada para comunicar sua “traquinagem estética”, isto é, sua arte, seja ela qual for.
Limitando o foco em algumas artes, há mudanças, por exemplo, na moderna arquitetura de Oscar Niemeyer, de Paulo Mendes da Rocha, de Ruy Ohtake e de outros mais. De igual modo, na pintura, escultura, etc. (citam-se aqui alguns artistas baianos de nascimento ou por adoção, de diferentes gerações) dos modernistas Mário Cravo Jr., Genaro de Carvalho, Carybé; de Juarez Paraíso, Calasans Neto, Sante Scaldaferri; de Bel Borba, Tati Moreno, Mário Cravo Neto (meu colega de sala, no Colégio Manoel Devoto); de Ramiro Bernabó, Ângela Cunha (minha colega de magistério na extinta ACBEU do Corredor da Vitória) e tantos outros.
Mudanças estão presentes na literatura e poesia de vanguarda. Por exemplo, em Manuel Bandeira, quando diz: Estou farto do lirismo comedido / Do Lirismo bem comportado / […] / Não quero mais saber do lirismo que não é libertação. E em Mário de Andrade, ao conclamar: Fujamos da natureza! Só assim a arte / não se ressentirá da ridícula fraqueza da / fotografia… colorida. Mudanças têm também sido proclamadas, principalmente, por poetas concretistas, neoconcretistas e pelos polêmicos defensores das poesias “Praxis”, “Veredas”, “Ptyx” e do “Poema-processo”, entre os quais, humildemente, me incluo.
Chama-se, ainda, a atenção para a música brasileira a partir do modernismo. Embora haja ciência de sua origem “africana e europeia, com influência indígena”, a musicalidade genuinamente brasileira tem proclamado mudanças (só para citar alguns) com Villa-Lobos, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Riachão, Cartola, Letieres Leite; com a bossa-nova de João Gilberto e Tom Jobim, com Caetano Veloso e seu Araçá Azul, com Gilberto Gil e suas Refazenda e Refavela; máxime, com Dorival Caymmi – “lídimo criador e um dos principais intérpretes do construto sociocultural, etnográfico e antropológico denominado baianidade.”
ENFIM (concluo, para evitar enfado), afirma-se que o espírito da “Semana de Arte Moderna” reitera o dizer de Graça Aranha, de que “o artista moderno deve estar em ‘íntima correlação com a vida moderna na sua expressão mais real e desabusada’.”
Prezados Senhoras e Senhores, o espírito revolucionário da “Semana de Arte Moderna”, com peremptória exigência de mudanças, continua vivo e de assaz importância para a contemporânea expressão artístico-cultural brasileira.
“HONNI SOIT QUI MAL Y PENSE!”
MUITO OBRIGADO.
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[1] Palestra proferida na abertura do evento “Patrimônio, Cultura e Memória” realizado no Museu de Arte da Bahia, em 05/08/2022, em comemoração aos vinte anos de existência do Grupo de Pesquisas sobre Cibermuseus, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal da Bahia (GREC/FFCH/UFBA).
[2] Pós Doutor, Doutor e Mestre em Administração e Mestre em Museologia. Pesquisador acadêmico na EAUFBA e no GREC/FFCH/UFBA. Conferencista, poeta e contista.